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Teoria e Prática, Razão e Sensibilidade: Arquitetura Hospitalar na Graduação

Por Bianca Breyer Cardoso


1| INTRODUÇÃO: TEORIA E PRÁTICA, COTIDIANO E ACADEMIA

A ciência do arquiteto é ornada de muitas disciplinas e vários saberes, estando a sua dinâmica presente em todas as obras oriundas das restantes artes. Nasce da prática e da teoria. A prática consiste na preparação contínua e exercitada da experiência, a qual se consegue manualmente a partir da matéria, qualquer que seja a obra de estilo cuja execução se pretende. Por sua vez, a teoria é aquilo que pode demonstrar e explicar as coisas trabalhadas proporcionalmente ao engenho e à racionalidade. (VITRÚVIO, 2007, p.61)

A promoção de uma formação calcada na articulação entre teoria e prática é um grande desafio para qualquer educador, mas eleva-se como dever para aqueles dedicados ao ensino-aprendizagem em Arquitetura e Urbanismo, uma vez que tal amálgama reside na origem do ofício do arquiteto, conforme sinalizado de forma decisiva por Vitrúvio, já no primeiro livro de seu Tratado de Arquitetura.

Especificamente no ateliê de projeto, principal disciplina de exercício projetual na grade curricular do curso de Arquitetura e Urbanismo, o elo entre teoria e prática deve sobrepor o entendimento da prática do projeto em si. Por óbvio, as disciplinas de projeto são aquelas em que o estudante coloca em prática todo o conhecimento teórico que articula de forma complexa história, representação gráfica, princípios compositivos, funcionais, técnicos, entre outros saberes, ao exercitar a simulação projetual de organização do espaço físico. Entretanto, o ingrediente prático ultrapassa os limites da aplicação da teoria na prática, ainda que esta não seja tarefa simples, uma vez que deve incorporar a prática profissional em seu sentido amplo. Ou seja, mais do que provocar os estudantes para a prática projetual, o professor do ateliê de projeto deve sensibilizá-los para o entendimento da complexidade que a profissão do arquiteto e urbanista exige, na prática, fazendo emergir os componentes da realidade vivenciada no cotidiano deste profissional, para além da universidade.

Neste sentido, a vivência profissional do docente fora da academia, principalmente em atividades de desenvolvimento de projeto, pode se tornar elemento chave para fornecer subsídios neste processo de sensibilização. São inúmeros os aspectos do cotidiano que complexificam o fazer projetual: a aproximação com o tema, o reconhecimento de exigências legais inerentes, a compreensão de normas técnicas especificas, as etapas de desenvolvimento de projeto, a tramitação para aprovação, a necessidade de estimar custos e avaliar a viabilidade orçamentária, o relacionamento com o cliente, que nem sempre é o usuário, e impõe necessidades específicas, etc.

Enfim, diante do desafio de ministrar uma disciplina de prática de projetos, o educador que experimenta, ou experimentou, a vivência em escritório se vê diante da oportunidade de compartilhar tal experiência com seus alunos, sem contudo subestimar o necessário rigor teórico e conceitual envolvido no fazer arquitetônico. Pelo contrário, a inserção da vivência profissional deve servir como elemento de valorização da necessidade de planejamento, reforçando a importância de uma postura atenta e rigorosa do arquiteto em defesa dos princípios atrelados ao seu ofício. Sendo assim, se converte em chance para alertar o estudante acerca do cotidiano profissional, preparando-o para estruturar estratégias de enfrentamento da realidade e consolidar argumentos que permitam conduzir o projeto, considerando todas as variáveis intrínsecas ao processo, mas assegurando a qualidade do produto final.

Diante do exposto, o presente artigo se estrutura como relato da experiência como docente responsável pela disciplina de Prática de Projetos IV, situada no 7º semestre da grade curricular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Luterana do Brasil ULBRA Campus Torres, para a qual a vivência prática no desenvolvimento de projetos serviu como principal subsídio para estruturação didática. Contando com a afinidade docente com a área da Arquitetura dos Ambientes de Saúde, advinda da atuação em escritório especializado, a temática hospitalar foi inserida na disciplina, objetivando instrumentalizar os estudantes com conhecimentos específicos de uma área corriqueiramente entendida como complicada, muito em função do rigor normativo e funcional atrelado.

O “medo da arquitetura hospitalar” pode ser verificado, segundo Carvalho (2006), na reticência de estudantes em enfrentar a temática em trabalhos de conclusão de curso, por exemplo, mas também entre profissionais já formados. Sendo assim, o objetivo inicial, ao inserir a temática, é de desmistificar a arquitetura hospitalar, justamente através do enfrentamento de sua complexidade, como forma de, num prazo mais longo, contribuir para a excelência dos ambientes de saúde brasileiros, ao introduzir o tema no cotidiano dos futuros profissionais.

Inicialmente, este trabalho apresenta a estruturação do método didático da disciplina, expondo os aspectos teóricos e conceituais associados à temática. Em seguida, avalia o processo e os resultados do exercício projetual realizado por estudantes de cinco turmas sucessivas, desde o segundo semestre de 2012. Por fim, o artigo discute a repercussão da prática pedagógica de inserção desta temática na estrutura do curso como um todo, e o possível impacto sobre a prática profissional futura destes estudantes.


2 ARQUITETURA E SAÚDE: DO PLANEJAMENTO À HUMANIZAÇÃO


Se eu insisto em aconselhá-lo mais uma vez para que consiga um arquiteto para dirigir os trabalhos de seu hospital, não é somente porque desejo muito trabalhar para um hospital modelo, mas porque, e principalmente porque, não posso crer que uma obra, da importância da sua, possa nascer sem estudo prévio. (VILANOVA ARTIGAS, 1945, p.49)


Há quase 70 anos, o renomado arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1945) preconizava a importância do que, em termos contemporâneos, denominamos planejamento físico e funcional dos Estabelecimentos Assistenciais de Saúde (EAS). Em carta endereçada ao dono de um hospital que, após receber sua proposta de honorários, havia questionado a necessidade de contratar um arquiteto para conduzir seu projeto, Vilanova Artigas elenca uma série de motivos para a contratação de profissional especializado.

Defendendo a necessidade de planejamento prévio dada a escala do estabelecimento, o arquiteto afirma que “o plano geral, feito com antecedência, é economia e não despesa”. Aludindo à tríade vitruviana, salienta o imperativo reconhecimento das funcionalidades específicas associadas ao tema hospitalar, discorrendo ainda sobre o rigor técnico necessário ao planejamento de instalações e infraestrutura, finalizando por destacar o significado de contemplar também uma composição formal harmônica e esteticamente elevada. Vilanova Artigas encerra sua carta colocando-se como defensor da economia, da ordem e do futuro, contrário ao empirismo e à imprevisão.

Se, por um lado, chama atenção a atualidade das palavras de Vilanova Artigas, comprovada no cotidiano da prática projetual e pela ainda recorrente desvalorização do planejamento, por outro, destaca-se o panorama percorrido nestas décadas, especialmente no que se refere à Arquitetura Hospitalar e ao espectro de conquistas relativas à normatização técnica e legal. Tais visões são complementares, especialmente no que tange à formação universitária, pois devem ser pontuadas objetivando, primeiro, a conscientização acerca da valorização profissional para, em segundo, focalizar a compreensão de uma área tão específica como a Arquitetura dos Ambientes de Saúde, que experimenta importante consolidação em nosso país.

A arquitetura de edifícios de saúde é caracterizada pela grande complexidade e pelo seu caráter funcional, atrelado aos procedimentos e práticas médicas e suas constantes mudanças e atualizações. É necessário considerar a necessidade de expansão e flexibilidade, a divisão por atividades, o atendimento a diversos fluxos e processos e prevenção de contaminação e infecção. (CAIXETA; FABRICIO, 2011, p.293)

Entretanto, para além de toda complexidade, contemplada de forma satisfatória pelas exigências normativas vigentes, o edifício de saúde exige a incorporação da chamada “humanização” que, nos termos de Toledo (2007), deve ser resultado de um processo que ultrapassa a beleza do traço, o respeito aos aspectos funcionais ou o domínio da técnica construtiva, mas garante o bem-estar físico e psicológico dos usuários.


3 MÉTODO: ESTRUTURANDO O PROJETO DE UM AMBULATÓRIO


O curso de Arquitetura e Urbanismo da ULBRA está implantado desde 1998 no município de Torres, situado no Litoral Norte do estado do RS, na divisa com Santa Catarina. Com 120 vagas anuais, o curso possui mais de 400 alunos matriculados, tendo mais de cem arquitetos e urbanistas egressos. Devido à condição geográfica, o curso possui alcance regional, sobre todo o Litoral Norte do estado e também o Sul de Santa Catarina, numa área com mais de 400 mil habitantes. Ainda como especificidade regional, o curso está situado num importante polo da construção civil, determinante para o perfil do aluno, via de regra ligado à construção, por tradição familiar ou como profissional prestador de serviços. Apesar do aquecimento do mercado, no entanto, a região ainda apresenta carência de profissionais capacitados para o projeto, especialmente de estabelecimentos assistenciais de saúde. A falta de especialização na área hospitalar culmina na busca por arquitetos da capital, que acabam atuando em hospitais e clínicas do Litoral Norte.

Buscando reverter esta carência, a temática dos estabelecimentos assistenciais de saúde vem sendo difundida no curso, especialmente nas disciplinas que desenvolvem a habilidade de concepção de projetos. A grade curricular conta com uma sequência de cinco disciplinas de Prática de Projetos, do 4º ao 8º semestre. A disciplina de Prática de Projetos IV - PPIV, situada no 7º semestre, foi a escolhida para abordar a temática, pela adequação de sua ementa, que trata da:


Elaboração de proposta arquitetônica para equipamento urbano de média complexidade, considerando sua relação funcional, espacial e volumétrica com o entorno e experimentando métodos inovativos, normativos, miméticos e/ou tipológicos na definição de uma linguagem coerente e contemporânea para o edificado. (ULBRA, 2013)


Considerando a vivência docente na área hospitalar, comentada ainda na introdução deste artigo, a disciplina de PPIV aborda o projeto de um estabelecimento assistencial de saúde de nível secundário do tipo Ambulatório, unidade de saúde destinada a prestar assistência a pacientes em regime de não internação, com atendimento eletivo (CARVALHO; BATISTA, 2011).

A disciplina objetiva aproximar os estudantes de uma temática que, ainda que especializada, oferece demanda crescente no mercado de trabalho, mas exige elevado rigor técnico. Sendo assim, a construção do programa de necessidades buscou contemplar certa complexidade na articulação de funções, mesmo se tratando de projeto individual desenvolvido pelo estudante em apenas um semestre.

O Ambulatório proposto para este exercício projetual contempla, além de ações do nível primário, consultas nas quatro especialidades básicas (clínica médica, gineco-obstetrícia, pediatria e cirurgia) e atendimento odontológico. Seu programa inclui, ainda, setor de Imagenologia, com exames de Raio-X, mamografia e ultrassonografia, além de todo apoio técnico e logístico necessários ao desempenho das atividades assistenciais. A elaboração do programa segue a legislação federal vigente, adotando a RDC-50 (ANVISA, 2004) como principal referência técnico-normativa, que também prevê aspectos de acessibilidade universal contemplados pela NBR 9050 (ABNT, 2004). Desde a nomenclatura dos ambientes até a definição de áreas mínimas e da relação funcional entre espaços, tudo está baseado na referida resolução, tomando ainda como suporte técnico o material disponibilizado pelo Ministério da Saúde através da Política Nacional de Humanização, chamada Humaniza SUS (BRASIL, 2007), e do portal SomaSUS – Sistema de Apoio à Elaboração de Projetos de Investimentos em Saúde (BRASIL,2014), importante fonte de pesquisas sobre infraestrutura de EAS.

A adoção de tal corpo normativo pretende familiarizar os estudantes com as normas vigentes, fazendo-os compreender a importância do amparo legal para assegurar um projeto adequado às boas práticas. Em paralelo, busca desafiá-los a seguir, de forma rigorosa, as definições legais, superando a dificuldade inicial de compreensão das exigências e assimilando a sistemática de articulação espaço-funcional.

De natureza teórico-prática, a disciplina de Prática de Projetos IV se estrutura sob o formato do consagrado ateliê de projeto, que, conforme explicitado em publicação anterior (CARDOSO, 2013), se baseia na criação de um ambiente criativo, no qual o diálogo seja alicerce da interação professor-aluno e proporcione a reflexão acerca do processo de projetação e ensinagem, estimulando o que Schön (2000, p.130) denomina de “escada da reflexão”. No ateliê de projeto, que mescla aulas teóricas, apoiadas em material audiovisual, e exercícios práticos, cada aluno desenvolve sua versão de projeto arquitetônico para um mesmo tema e terreno, orientados pelo professor através de assessoramentos individuais e painéis coletivos.

Neste sentido, a estruturação da disciplina prevê, inicialmente, uma aproximação teórica do tema, a fim de situar o estudante no quadro atual da Arquitetura dos Ambientes de Saúde. A primeira atividade é a leitura do artigo “Métodos para auxílio de projetos arquitetônicos de EAS” (CARVALHO, 2012), que fornece um panorama da prática projetual de Estabelecimentos Assistenciais de Saúde. Segue-se uma aula expositiva sobre o Edifício Hospitalar Contemporâneo e a atuação do arquiteto, baseada em artigo de Jonas Badermann de Lemos (2011) e palestra sobre Humanização e Ambiência proferida por ele no 3º CBDEH (2008), durante a qual são apresentados os requisitos para criação de espaços humanizados, estimulando a compreensão do espaço arquitetônico em sua dimensão física e psicológica, em convergência à abordagem de Luiz Carlos Toledo em “Feitos para curar” (2002) e “Feitos para cuidar” (2008).

Em seguida, são encadeadas três unidades teórico-práticas, compostas por aulas de repertorização e exercícios específicos. A primeira unidade apresenta o tema do Ambulatório e seu Programa de Necessidades, elencando setores funcionais, atividades, organograma, pré-dimensionamento, usuários e fluxos. Ao final, os estudantes realizam o exercício de Interpretação do Programa, através do qual analisam as articulações programáticas. A segunda unidade aborda a inter-relação entre Programa, Sítio e Condicionantes, sendo concluída com exercício de análise do sítio e interpretação pessoal através de mapa-síntese. Por fim, a terceira unidade trata de Modulação e Racionalidade Estrutural, tomando como referência o manual prático de Goés (2011), especialmente o capítulo sobre Critérios de Projeto, e artigo de Carvalho e Tavares (2002) sobre coordenação modular, exemplificada pela lógica estrutural utilizada pelo arquiteto João Filgueiras Lima, mais conhecido como Lelé, no Hospital da Rede Sarah, no Rio (2009). A obra do arquiteto Lelé é tomada, aliás, como referencial significativo no âmbito nacional da articulação entre rigor tecnológico e humanização através da arquitetura (LATORRACA, 2000). A unidade 3 é concluída com exercício de pesquisa de sistemas construtivos e exploração de solução estrutural, com predefinição de módulo e malha.

Após esta primeira aproximação de Programa, Lugar e Construção (MAHFUZ, 2004), os estudantes elaboram estudo de caso, tomando o projeto de outro estabelecimento assistencial de saúde como referência arquitetônica, analisando-a em seus aspectos formais, funcionais e técnicos. Só depois desta análise referencial é que os estudantes dão início ao desenvolvimento do projeto em si, sequenciado em etapas de Partido, Anteprojeto e Detalhamento.

O desempenho dos estudantes é avaliado pelo processo de envolvimento ao longo do semestre e pela qualidade do projeto final, segundo cinco critérios. O primeiro avalia a qualidade de representação e apresentação gráfica, fundamental para compreensão das soluções projetuais por parte do professor. Os demais critérios avaliam: a lógica de ocupação do terreno e a relação com o entorno; a funcionalidade expressa pelo cumprimento das exigências do programa, zoneamento, fluxos, dimensionamento e layout; a composição formal, do ponto de vista da articulação volumétrica e adequação da linguagem; e, por fim, a materialidade, expressa pelas soluções construtivas e estruturais e pelo detalhamento arquitetônico.


4| RESULTADOS: A FUNCIONALIDADE E O ESPAÇO HUMANIZADO


Desde a introdução da temática dos Ambientes de Saúde, cinco turmas já passaram pela disciplina de Prática de Projetos IV, contando a do semestre atual de 2014/2. Com número de matriculados entre 15 e 20 estudantes, os resultados variaram semestre a semestre.

Na primeira turma, as exigências funcionais do programa despertaram inquietação de uma parcela dos alunos, que enfrentou dificuldades na articulação dos ambientes e nos requisitos de dimensionamento e layout. A coordenação modular também foi um obstáculo para alguns dos estudantes, que apresentaram dificuldades na definição da malha estrutural. Porém ao final, grande parte dos estudantes obteve êxito na articulação entre forma, função e materialidade, sendo que uma parcela da turma não atingiu resultado mínimo satisfatório para aprovação.

Superado o impacto inicial da inclusão de um tema tão específico na grade de projeto, o segundo semestre foi muito expressivo em termos de resultados, quando a absoluta maioria teve desenvoltura para lidar com as exigências programáticas e a coordenação modular, o que proporcionou uma exploração mais vasta no campo das formas e da técnica. Esta facilidade, acompanhada da excelente motivação dos estudantes, permitiu, inclusive, que o edital de entrega final aprofundasse aspectos de projeto executivo e detalhamento, tão necessários à prática profissional, abrangendo até detalhes de interiores, aspecto pouco usual nas demais disciplinas de projeto.

A terceira turma apresentou, em sua maioria, domínio dos aspectos formais, funcionais e materiais, porém com resultados regulares, tendo apenas um caso de projeto muito satisfatório, no tocante à racionalidade estrutural, ao dimensionamento enxuto e à humanização do espaço através da exploração dos efeitos de iluminação natural e o contato com o verde.

Considerando que a presença de estudantes reprovados poderia ser fator de desmotivação, foram feitas alterações no programa, com redução de área total, em paralelo à escolha de um novo terreno, com entorno mais consolidado e, consequentemente, mais desafiador. Pelo fato do terreno estar localizado ao lado do campus universitário, há um estímulo em estabelecer o diálogo do novo equipamento com estruturas assistenciais existentes vinculadas à Universidade, criando uma espécie de polo da saúde.

A quarta turma, com terreno e programa renovados, respondeu de forma satisfatória às alterações. A troca do terreno surtiu efeitos positivos, sobretudo pelo desafio de qualificar o entorno que os estudantes vivenciam cotidianamente, consolidando o tratamento do espaço aberto adjacente ao ambulatório de forma integrada ao projeto, como forma de assegurar a humanização do espaço. Houve também adesão significativa, desde o princípio, à ideia de coordenação modular.

A turma atual ainda realiza as etapas iniciais de aproximação do tema, mas parece mesclar a motivação pelo tema desafiador à apreensão diante de sua complexidade. O terreno se mantém, especialmente por exigir preocupação especial com a inserção urbana do edifício, bem como o tratamento do espaço aberto adjacente, gerando o questionamento sobre a necessidade de controle e sobre o tipo de interface a ser proposta entre o espaço público da rua e o interior do edifício. Como novidade, neste semestre os estudantes desenvolverão um setor denominado multiuso, que abriga mini-auditório e cafeteria, e pode proporcionar ligação mais direta com usuários externos e o entorno da universidade. Além disso, vêm sendo estimulados a desenvolver sistemas construtivos alternativos, mais propícios à natureza flexível do programa.

Analisando o panorama geral, percebe-se que a exploração da temática de ambientes de saúde no âmbito acadêmico suscita algumas questões comuns às diversas turmas. A primeira reflete a dificuldade de distinção entre o programa ambulatorial e os setores de urgência/emergência, não previstos na proposta. A natureza eletiva do atendimento é de difícil compreensão pelos estudantes que, em sua maioria, insistem em contemplar o acesso de ambulâncias como elemento central. Podemos supor que esta dificuldade reflete a falta de uma cultura geral de prevenção da saúde, o que induz ao entendimento de que só buscamos atendimento em casos de risco iminente. Em paralelo, podemos atribuir a confusão ao quadro geral de más condições das emergências, vivenciado pela maioria dos estudantes em algum momento da vida.

A segunda questão está relacionada à busca por repertório para elaboração de estudo de caso. Pela majoritária falta de estrutura mínima nas instalações dos estabelecimentos assistenciais regionais, advinda muitas vezes de adaptações malsucedidas em edifícios pré-existentes e do descaso com as normas, os estudantes são aconselhados a analisar projetos publicados em livros, revistas e sites especializados. Se, por um lado, este caminho aumenta o rigor na escolha dos projetos, dificulta a compreensão do funcionamento prático, pela impossibilidade de observação in loco. Ademais, a análise bibliográfica é focada, em sua maioria, em projetos internacionais, pela falta de referências nacionais que tratem do projeto de novas edificações, para além de intervenções de arquitetura de interiores, e que contemplem de forma significativa, não apenas a funcionalidade, mas os aspectos formais e técnicos.

A boa notícia é que, pela primeira vez em dois anos, no semestre de 2014/1 foi apresentado como estudo de caso o projeto de um ambulatório de especialidades médicas elaborado pela equipe técnica de uma prefeitura municipal do estado de São Paulo (VIEIRA; HATIW LÚ, 2006). O projeto, muito similar ao desafio proposto na disciplina, reorganiza a paisagem urbana do entorno e aborda os temas de acolhimento e humanização, além de responder de forma rigorosa aos aspectos funcionais e técnicos, com uma linguagem arquitetônica contemporânea. Além disso, soa como anúncio de um novo cenário, que materializa os preceitos da excelência no planejamento físico e funcional de EAS, especialmente no âmbito das instituições públicas, e ampara, com muita pertinência, a discussão proposta aos estudantes.

Por fim, como questão recorrente entre as turmas, está o desafio de ultrapassar o limite das exigências funcionais e da complexidade programática e normativa, para contemplar a humanização dos espaços. A maioria dos estudantes explora as relações entre interior e exterior e a presença de áreas verdes, através da criação de pátios, como forma de qualificar os espaços internos, observando ainda a iluminação natural e o conforto térmico. As salas de espera se estruturam, para a maioria, como espaços diferenciados, de dimensões generosas, nos quais exploram variações de pé-direito e abundante contato visual com o exterior. Outro aspecto trata da preocupação com as circulações pois, ao passo em que estão atentos aos diferentes fluxos entre pacientes e equipe, os estudantes procuram dotá-las de iluminação natural, evitando caminhos tortuosos que gerem dificuldade de localização ao paciente. Em síntese, observamos que o rigor funcional e normativo se estrutura como obstáculo inicial aos estudantes, o que, contudo, não os impede de buscar soluções arquitetônicas que explorem, além da dimensão física, o bem-estar dos usuários.


5 CONCLUSÃO: AFASTANDO O MEDO DA ARQUITETURA HOSPITALAR


À guisa de conclusão, observamos que a experiência de difusão da Arquitetura de Ambientes de Saúde na esfera acadêmica, a partir da inserção da temática nas disciplinas de projeto, vem surtindo efeitos bastante positivos. O sucesso da iniciativa pode ser analisado a partir da repercussão sobre o Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, cujo tema de projeto é de livre escolha do aluno. Metade dos alunos aprovados em PPIV nos semestres aqui analisados já chegaram ao TCC. Destes, cerca de 30% escolheram ambientes de saúde como tema, entre os quais se destacam ambulatório, clínicas médicas, instituições para idosos, entre outros.

O incremento significativo de equipamentos de saúde, quase inexistentes até então, entre os temas de TCC indica que a disciplina vem atingindo o objetivo de instrumentalizar os estudantes com conhecimentos específicos, sobretudo nos quesitos funcionais e normativos. Se imaginarmos que a escolha do tema exige, via de regra, que o estudante se sinta minimamente apto a lidar com as especificidades inerentes ao tema, podemos supor que, como profissionais, se sentirão mais preparados para encarar os desafios do projeto de estabelecimentos assistenciais de saúde. A reticência de enfrentar a temática, mencionada por Carvalho (2006) e pontuada anteriormente, estaria assim se reduzindo, contribuindo efetivamente para a desmitificação da arquitetura hospitalar, afastando o “medo” geralmente associado.

Neste sentido, a conscientização dos estudantes acerca da importância da legislação, estimulada pelo entendimento de que a norma e todo conhecimento sistematizado pelos órgãos competentes serve de auxilio fundamental para o arquiteto e não como entrave, tende a assegurar uma prática profissional rigorosa do ponto de vista legal e atenta às premissas da boa prática.

O balanço da experiência demonstra que a inserção de elementos da vivência profissional do docente fora da academia atua de forma muito objetiva no processo de sensibilização, ao trazer exemplos reais ao estudante. Diversas situações cotidianas do escritório de arquitetura hospitalar são levadas para dentro da sala de aula, seja para pontuar a necessidade de compreensão dos processos através da vivência das rotinas hospitalares, por exemplo, ou para demonstrar como as soluções arquitetônicas podem qualificar o trabalho assistencial prestado pelas equipes médicas e de enfermagem. A prática também serve para ilustrar como o domínio técnico e legal facilita o trânsito junto aos órgãos fiscalizadores, gerando a celeridade dos processos de aprovação e um bom relacionamento entre os técnicos das esferas pública e privada.

A boa repercussão entre os estudantes é percebida pelas conversas informais que demonstram que a arquitetura hospitalar passa a fazer parte do rol dos possíveis campos de atuação, pois eles visualizam os procedimentos práticos que envolvem o cotidiano do arquiteto de edifícios da saúde. Muitos passam manifestam interesse em atuar na área depois de formados, mesmo após compreender o rigor inerente à temática. Muito possivelmente, os aspectos de humanização e as possibilidades de qualificar de forma mais efetiva a vida dos usuários, contribuindo para o bem-estar e a cura, são o motor deste envolvimento, que delineia de forma clara a contribuição social, no sentido mais amplo, que o arquiteto pode oferecer através de seu ofício.

Por fim, do ponto de vista dos produtos projetuais, o fato dos estudantes não se limitarem aos aspectos funcionais, mas explorarem soluções arquitetônicas que contemplam a humanização dos espaços e o bem-estar dos usuários indica que estamos no caminho certo para aliar teoria e prática, razão e sensibilidade, na busca pela excelência dos ambientes de saúde brasileiros. Sabemos que a caminhada é longa, mas a semente lançada em época tão fértil, como a de formação universitária, há de espalhar seus frutos, a começar pela qualificação regional destes futuros profissionais, seguida da esperada qualificação dos equipamentos assistenciais locais.


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(publicado originalmente no Caderno ABEA 39)

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